sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Bicha

                                               


No meu tempo de criança a palavra bicha significava lombriga, um verme intestinal.
Em Portugal, a palavra bicha quer dizer fila.
Mas de tempos para cá a palavra tornou-se um termo ofensivo aos homossexuais. 
Lembro também que minha irmã Rosi ficou internada por dois meses em um hospital no bairro de Santa Cecília. Rosi tinha dois anos e começou a ficar doentinha, ter febre e a soltar lombrigas nas fezes e no vômito.
Tudo isso por causa de um pedaço de bolo.
Rosi sempre foi mais frágil entre os filhos grandões de mamãe, mas depois de adulta é a mais saudável de nós; tanto que doou parte do fígado para meu irmão Fubá. (Ela escreverá sobre isso e postarei aqui).
Rosi ficava facilmente enjoadinha e doentinha e se tivesse vontade de comer algo, mamãe e Mãevelha faziam de tudo para conseguir. 
Mas acontece que um dia Rosi e a molecada do quintal viram a vizinha chegar do mercado com um pacote de bolo. Sabe esses bolos prontos? 
Era muita criança e a vizinha deu um pequeno pedaço para cada uma e disse que não tinha mais. Minha irmã queria mais e eu fui pedir e disse que ela era doentinha e pequenininha; que a vizinha podia dar o bolo escondido e eu não falaria para ninguém.
Mas a vizinha disse que não tinha mais. Acabou.
Olho para o fogão e vejo o bolo guardado no forno e digo: "Não acabou não. Olha ali".
A vizinha fez cara feia e disse: "É, mas aquele ali é do meu marido!". E fechou a porta.
Voltamos a brincar.
Mamãe chega do trabalho e percebe que Rosi está molinha e não quer jantar. Tem febre também. Mamãe pergunta se ela teve vontade de comer alguma e eu conto o ocorrido.
Mãevelha ouve e fica indignada: "Mulé miserávi. Negar o di cumê a uma criança".
Mamãe diz a Rosi que vai comprar o bolo para ela quando receber da firma, mas não dá tempo. Minha irmã fica cada vez pior e papai sai à procura de um carro para levá-la ao hospital mais próximo. 
Saem papai e mamãe com Rosi nos braços. Mamãe faz recomendações a Mãevelha. Eu choro disfarçadamente aos vê-los partir dentro do táxi. Peço a Deus e aos anjinhos que cuidem da minha pequena irmã.
Papai e mamãe voltam no dia seguinte. Mamãe chega toda chorosa. Perguntamos por nossa irmã. Ficara internada.
Mamãe diz que ela ficará um bom tempo no hospital e que a equipe médica disse para levar brinquedos para que ela não sinta tanta falta de casa. Vou à uma lojinha do bairro e compro uma boneca índia. Era uma boneca simples, mas estava tão bonita vestida de índia que me encantei e imaginei que minha irmã iria gostar.
Mamãe pedia para sair um pouco mais cedo do trabalho para visitar Rosi. O transporte público naquela época também não era tão bom.
Um dia mamãe volta chorando da visita e todos queremos saber o que aconteceu. Mamãe diz que Rosi não quis ir com ela e deu os bracinhos para a enfermeira. Mamãe temia perder a filha para outra pessoa.
Mãevelha disse: "Se avexe não. Ela é muito novinha e quando voltar pra casa vai se agarrar em você de novo. Ela vai voltar boa, se Deus quiser e meu Padim Padre Ciço do Juazeiro".
Rosi voltou. Tão pequenininha, tão magrinha, os bracinhos pequenos picados pelas agulhas, mas voltara para casa. Graças a Deus.
E a partir dai dobraram os cuidados de mamãe e Mãevelha para com Rosi.
Mamãe fazia recomendações para que Rosi não ficasse com vontade de comer as coisas; que desse um jeito, que pegasse emprestado com alguém, que ela pagaria nos sagrados dias 10 e 25 do mês, os dias do pagamento.
E mesmo depois de adulta Rosi ainda inspirava cuidados em mamãe. Quando viajava com Pedro, meu cunhado favorito, mamãe sempre dizia: "Olhe Pedro, não deixe ela passar vontade não, visse? Ela já teve problema por causa de bicha (lombriga). Eu quase perdi minha filha, minha Nossa Senhora do Pepé du Socorro (perpétuo socorro)".
Pedro tranquilizava mamãe e prometia que iria cuidar bem de Rosi.
Acho que para mamãe, todos nós, mesmo já marmanjos, éramos ainda carentes de cuidados.
Mamãe.


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