segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Acromegalia: Descoberta, Cirurgia e Coma

                                            




Maio  de 2007.
Exame médico para renovação da carteira de motorista. Esperava um exame simples, básico, comum. Aguardo na sala de espera.
A médica me chama e enquanto conversa, olha fixamente para mim. Mede minha pressão arterial; 17 x 11.  Faz perguntas sobre minha família, hipertensão, crescimento e acromegalia. Por quê? Pergunto eu. A médica diz que minha pressão está muito alta, sou muito grandona, tenho pés, mãos e rosto grandes, tenho traços acromegálicos. Ela me aconselha a procurar um médico e falar sobre o assunto; fazer exames.
Eu já tratava a coluna, tinha dores fortes, andava torta, travava. Vou ao médico e falo com ele sobre a desconfiança da sua colega. Fiz exames e depois os levei ao médico. O simpático profissional da saúde disse que não era nada demais, só uma pequena inflamação na região da hipófise, mas mesmo assim me indicou um colega seu, um endocrinologista.
Fui ao endócrino, fiz exames de sangue que confirmaram as primeiras suspeitas de acromegalia: níveis altíssimos do hormônio do crescimento. Iniciei tratamento com “Dostinex”.
Continuo fazendo exames e os níveis hormonais mantêm-se altos. Fico insatisfeita, resolvo procurar outros médicos, um para tratamento da coluna e outro para tratamento da acromegalia.
Foi-me indicado outro endócrino. Faço exames e ele decide trocar o medicamento, começo a tomar “Sandostatin-LAR” ou “Octreotida” de 10mg. Esse remédio não é vendido em farmácias; é uma droga importada e distribuída pelo governo nas chamadas “Farmácia Alto Custo”. Tomo o remédio por um ano e o não surte o efeito esperado; o médico aumenta a dose para 20mg. Mais um ano e nada de melhora. O endócrino acha melhor remover cirurgicamente o tumor da hipófise e me encaminha ao neurocirurgião.
Mas antes disso eu trabalhava e tratava da coluna. Trabalhei durante um ano com dores terríveis nas costas, com dificuldade para caminhar e com a falta de compreensão de algumas pessoas. Isso doía mais.
Ao mesmo tempo em que sou chamada para assumir meu cargo de professora na rede estadual de ensino, sou chamada pelo médico para discutir meu problema de saúde. Decidi tratar com remédios e ver até onde poderia agüentar. Agüentei muita coisa: a escola fica num bairro distante, tomava quatro conduções para chegar ao trabalho, minhas aulas foram distribuídas em horários absurdos e foram inúteis minhas tentativas para fazer essas pessoas entenderem ou ao menos respeitarem meu problema.
Alguns meses depois compro um carro. Facilitou bastante minha locomoção, mas agora eu teria despesas com combustível, pedágio e seguro do carro. A escola fica na periferia, uma região afastada do centro.
Agüentei um ano com dores, cansaço e um sentimento de pouco caso, de humilhação por parte de alguns colegas de trabalho, principalmente de pessoas em postos superiores ao nosso de professor.
Março de 2009. Peço para sair mais cedo, não me sinto bem. Vou ao médico que fará a cirurgia na coluna. Ele pede meu afastamento.
Maio de 2009. Sou internada na AACD e é realizada cirurgia na minha coluna: duas hastes e 21 parafusos de titânio.. Sinto-me uma mistura de Robocop com Wolverine. Tudo correu tranquilamente, volto para casa em doze dias. Faço fisioterapia e após um mês e meio, vou ao consultório do neurocirurgião, que se admira com minha rápida recuperação.  A próxima cirurgia é marcada para agosto, o neurocirurgião acha melhor esperarmos uns três meses para que haja uma boa recuperação da primeira cirurgia.
Agosto de 2009. Hospital Santa Helena. Subo para a sala de pré- operatório. Troco de roupa, sou medicada e aguardo. O médico anestesista vem conversar comigo e fazer as perguntas de praxe. Um enfermeiro vem me buscar para me levar para a sala de cirurgia. Brinco com o neurocirurgião, imito seu sotaque sulista e digo que tudo vai ficar bem. Não fica.
Acordo um mês depois. Fui entubada, amarrada, desenganada. A cirurgia foi complicada, deveria durar duas horas aproximadamente, mas durou nove. Perdi muito sangue, entrei em choque, tive parada respiratória. Esperava-se um tumor simples, comum, mas era um tumor grande e com sistema vascular próprio. Entrei em estado de coma. Minha família preocupada, agoniada e eu parecendo dormir, travava uma batalha cansativa para poder continuar viva.

Coma.
Vi muita coisa, muita gente e realidades inimagináveis para o nosso mundo real, para o nosso aqui e agora. Foi uma viagem intensa, cansativa, assustadora, horrível. A maioria das situações foi de terror, de perseguição, raiva, desconfiança, culpa e dúvida.Senti fome, sede e frio. Sofri injustiça, acusações. Medo e solidão.
Para o mundo exterior eu parecia dormir; dormia profundamente. Ligada a aparelhos, agulhas enfiadas por todo meu corpo ou por onde fosse possível encontrar veias; até nos meus pés havia agulhas e bolsas de sangue.
Estava inchada, pesada; tive trombose no braço esquerdo. Minhas unhas estavam compridas e meus dedos sujos de sangue devido às constantes picadas para os exames de glicose. Olhava para meu braço esquerdo inchado e para meus dedos sujos de sangue e pensava que estava morta e já em estado de decomposição. Sentia-me suja, fedida e queria muito tomar um banho. Queria que cortassem minhas unhas e meu cabelo, mas não conseguia falar, me fazer entender.  Meu estômago doía e fazia barulhos estranhos de um estômago vazio. Achava estranho não comer e me perguntava porque não traziam comida para mim. Sentia-me abandonada, largada, esquecida. Ninguém vinha falar comigo, cuidar de mim. Achava que as pessoas me evitavam por não gostarem de mim por algo de muito ruim que eu, na minha imaginação, havia feito. Nessa nova realidade tão palpável, tão assustadoramente real, eu havia prejudicado muita gente, inclusive pessoas que eu nem conheço direito, que não tenho muito contato e até pessoas que amo demais: meus sobrinhos.
Eu via e ouvia as pessoas. Via quando os médicos e enfermeiros falavam meu nome e explicavam meu caso; começavam assim: “Essa paciente é a Maria Rejane, foi submetida à cirurgia de adenoma de hipófise, teve complicações...”.
Via e ouvia minhas irmãs falando comigo, meus irmãos tentando segurar as lágrimas, meu cunhado dizendo para eu ficar boa para comemorarmos com uma boa picanha e uma cerveja bem gelada. Meu médico perguntando se eu sabia quem ele era e para eu apertar sua mão; vários outros médicos conversando comigo e dizendo palavras animadoras.
Foi uma batalha. Venci. Mas antes de vencer, tive que lutar muito. Lutar contra coisas, pessoas, seres, entes, criaturas e situações que queriam me destruir, me fazer acreditar que eu era culpada de crueldades inimagináveis, que eu havia prejudicado gente inocente, que eu era má e merecia sofrer, morrer.  Tive momentos de angústia profunda.  Senti muito medo, solidão, desespero, culpa, abandono e incompreensão. Queria me fazer entender, queria ser compreendida, aceita, desculpada. Queria pedir perdão pelos meus erros, pelo mau que causara a um infinito número de pessoas.
Num momento de desespero extremo pedi a Deus que me deixasse morrer. Desafiei o Criador, disse que se Ele existe mesmo, que me levasse daqui! Estava cansada de estar presa no meu próprio corpo, de não estar em lugar nenhum e estar em todos os lugares ao mesmo tempo. É fisicamente impossível, mas totalmente possível quando se está em coma. Nesse estado não há tempo, horários, cedo ou tarde, noite ou dia. Viaja-se constantemente e passa-se por diferentes planos. Vi pessoas que já se foram há muito tempo, voltei a ser criança, fui outra pessoa.
Assistia aos acontecimentos como se estivesse assistindo a um filme. Imagens e sons fortes e incômodos; assustadores. Uma música infernal, alta, forte e intensa. Pedia que desligassem aquele som, aquelas imagens. Crianças pequenas, deformadas e doentes.
No começo do coma, assim que “apaguei”, vi crianças que voltavam da escola e vieram me buscar para ir com elas. Vi-as do pescoço para baixo, não via seus rostos. Estavam com uniforme escolar e carregavam suas mochilas. Estavam impacientes, queriam que eu fosse logo. Eu queria ir com elas, sentia-me querida e queria protegê-las. Eu lhes dizia que partiria com elas assim que conseguisse me livrar daquelas pessoas que cuidavam do meu corpo. Eu dizia que a demora não era minha culpa e sim daquelas pessoas que estavam ao meu redor. Mas as crianças ficaram impacientes e se transformaram. Seus gestos doces e seus uniformes azul e branco deram lugar a roupas escuras e gestos impacientes, agressivos e ameaçadores. Pude ver seus rostos e isso me assustou. A doçura e inocência deram lugar à violência, impaciência e ameaça.  Eu tentava fechar os olhos para não vê-las, mas tinha medo de dormir e ver coisas piores. Pedia a Deus que me livrasse daquilo tudo.
As crianças continuavam bravas. Mostravam imagens com símbolos e ameaças de morte; se eu não fosse por vontade própria, elas me buscariam. Eu tentava explicar que não dependia só de mim. Havia um envelope escrito mostrando a hora que eu deveria morrer; era por volta das 20hs. Eu fiquei assustada, pois para mim, naquela realidade, já era 18hs.
Tenho muita febre, sinto meu corpo muito quente e minha cabeça ferver. Estava a um passo da morte. O hospital liga para minha irmã às duas horas da manhã e diz para se preparar para o pior.
Nessa fase em que os médicos lutam para me salvar eu luto contra os demônios que tentavam me dissuadir e me convencer de que eram verdadeiras as mentiras que me mostravam e me faziam vivenciar e sofrer. Dentre os horrores vividos, vi pessoas querendo me destruir, me matar. Essas pessoas tentavam me matar, não conseguiam e mandavam outras tentar. Pessoas conhecidas, algumas próximas, outras nem tanto, familiares. Eu me senti suja, má, merecedora de toda a agonia e sofrimento por que passava. Sentia-me um monstro, um ser abominável.
Durmo e acordo sentindo muito frio. Abro os olhos na esperança de estar em outro lugar, de já ter morrido, mas me desespero ao constatar que estou no mesmo lugar gelado e vazio. Começo a conversar comigo mesma e a me culpar, falo meu nome completo, o número do meu RG e CPF, meu endereço.  Lembro dos causos que papai contava e me vejo personagem de um deles. Papai dizia que o maior castigo para uma pessoa é desejar a morte e continuar vivo, é querer morrer e não conseguir.
Rezo, lembro das orações que papai fazia antes de dormir. Chamo por Deus e por entidades que gosto e confio muito. Peço que me levem e me protejam, me livrem dessa agonia, desse sofrimento. Uma flor púrpura gigante se abre e dança um balé envolvente. É uma flor imensa que invade o espaço de uma sala. Luz. Caminho segurando na mão de alguém que me conduz a um lugar bom.
Chego a uma caverna de paredes arenosas e vermelhas. Vejo bonequinhas minúsculas de cabelos loiros e cacheados. O vento desfaz os cachinhos e eu corro atrás deles para que não se percam. Vejo patriarcas hebraicos com suas roupas típicas; mulheres que trabalham nos afazeres domésticos e crianças que brincam no chão dessa caverna vermelha.
Vejo líderes mundiais, vejo monstros políticos e ditadores que dizimaram povos inocentes numa época remota. Vi muita coisa esquisita.
Vejo-me agora num pátio de hospital. Tenho muita febre e minha cama é colocada nesse pátio até que se resolva o que farão comigo. Há um posto policial dentro desse hospital e uma senhora elegante que tenta administrar a situação. Vejo minhas irmãs, minha ex-cunhada e as filhas que vão me visitar. Minha irmã não quer deixar as meninas se aproximarem de mim, ela teme que eu contagie as meninas com a minha doença. Vejo pessoas limpando e varrendo esse pátio, vejo papai ao longe, com as mãos nos bolsos.
Há uma sucessão de imagens, sons, situações, pessoas que vão e vem. Há uma confusão de sentimentos em relação a mim; na maioria das vezes as pessoas querem que eu morra e em alguns raros e suaves momentos, essas pessoas lutam para que eu continue a viver. Sinto-me perdida no meio desse turbilhão.
Em outro momento desse filme estranho vejo-me próxima a um helicóptero pousado numa praia de mar muito bravo com ondas furiosas. Venta muito e faz frio. Mais uma vez o vento forte e gelado. Ao lado do helicóptero tem um homem de cabelos brancos, ele me aguarda. Eu e o homem estamos vestidos com roupas que parecem roupas de montaria; o homem me aguarda para que possamos embarcar no helicóptero que será pilotado por mim. Sou jovem e bela. Tenho uma aparência agradável, suave e delicada, bem diferente dessa aparência estranha causada pela acromegalia. Nunca fui bela, mas a acromegalia piorou muito o que já não era tão bom e trazendo de volta velhos fantasmas que lutei tanto para exorcizar. Nos meus momentos de revolta volto-me para Deus e pergunto: “O que foi que eu fiz? Por que tenho que ter uma doença que me deixa mais feia ainda? Uma doença que me deixa masculinizada! Uma doença que faz com que meus pés cresçam e me obrigue a usar calçados masculinos por ser difícil encontrar sapatos femininos em números grandes. Já tenho pés e mãos grandes, já estou com a aparência transformada, a voz está ficando rouca e grave. É desagradável fingir normalidade com as pessoas me olhando fixamente e fazendo comentários maldosos e preconceituosos. Já vi e ouvi expressões admiradas de pessoas que se perguntam se sou mulher ou homem; crianças já me pararam na rua e me perguntaram a mesma coisa. Em algumas situações mais curiosas as pessoas olham para a região de minha genitália e para meu peito para verificar ou comparar o que vêem com a minha aparência masculinizada. Um corpo de mulher com cara de homem. Às vezes acho que isso é ironia da vida ou uma boa sacanagem do destino mesmo e aí volto ao passado para tentar entender o que está acontecendo comigo fisicamente. Procuro entender o contexto social e cultural daquela época, a época em que nasci.
Venho lá do sertão pernambucano. A cultura é fortemente machista e as tradições, crenças e comportamentos sustentam essa cultura. Segundo a crença popular é melhor, mais importante e mais bonito que o primeiro filho seja menino, ou um “cabra macho”.
Mamãe acreditava e seguia esses costumes e tradições. Ironicamente mamãe era machista e ao mesmo tempo era o “homem” da casa. Era ela quem tomava as decisões e resolvia os problemas. Mamãe foi mais forte do que muito “cabra macho”.
Mamãe casa-se em 1966 e engravida de mim. Sou a primeira de seis irmãos. Mamãe queria muito que eu fosse menino, acreditava que é mais bonito que o primeiro filho do casal seja menino. Ela passa os nove meses da gestação torcendo por um menino. Uma das fortes crenças é de que meninos e meninas nascem em posições diferentes; ou seja, “meninas nascem de cara pra cima e os meninos nascem de cara pra baixo”. Chega a hora do parto após dias de dor e sofrimento. Mamãe era pequenina, pouco mais de metro e meio de altura. Eu nasci grande, quase cinco quilos e ao me tirar de mamãe a parteira diz: “Louvado seja Deus Nosso Senhor Jesus Cristo! É um cabra macho!”. Eu nasci de cara pra baixo! 
A alegria de mamãe e da parteira dura pouco, “a moleca nasceu na posição de macho”. Acho que foi a partir daí que a culpa começou a fazer parte da minha vida. Decepcionei. Dor e sofrimento enormes para uma decepção maior ainda. Inconscientemente mamãe me culpa e me pune por não ser o filho que ela queria tanto. Sou culpada por não ser menino e ainda por cima ser uma menina feia. Um bebê feio, uma criança feia. Uma menina de pele claríssima e negros cabelos cacheados, ou “cabelo ruim”. Noutra tradição sem sentido espera-se que pessoas de pele clara tenham “cabelo bom” e que é normal pessoas de pele escura terem o “cabelo ruim”; o contrário causa estranhamento e admiração.  Alguém parou para pensar que os povos se misturam dando origem às pessoas das mais variadas formas, cores e tamanhos?! Pois é, venho exatamente de uma mistura de raças, ou melhor, de etnias; pois raça só tem uma: RAÇA HUMANA!!!
Dou muito trabalho na minha primeira infância; mamãe não tem leite para me amamentar e descobre que sou intolerante à lactose. Papai troca leite de vaca por leite de cabra. Minha avó Mãevelha prepara mingaus com leite de coco. Sobrevivo.
Mamãe engravida de novo e nasce um menino. Alegria.
O menino adquire tétano umbilical ou “mal de sete dias” como é comumente chamado. O menino morre no sétimo dia de vida. Tristeza.
A menina branca, feia e de cabelo ruim sobrevive. Culpa.
Mas há um consolo, meus avôs me adoram por eu ser menina e me acham bonita. Sou bonita e importante para alguém e isso me basta.  Meus avôs José e Paipreto. Amor.
Mamãe engravida pela terceira vez e agora vem um menino que vinga. Felicidade.
Outros filhos e filhas vieram. Somos seis.  Meus irmãos e irmãs são belos. E bela é a vida que desejo a eles.
É isso. Mamãe queria tanto um primeiro filho homem. Teve seu sonho despedaçado com a minha chegada. Fui culpada por essa decepção. Fui culpada por não ser menino, por não ser bonita, por não ter cabelo bom.
Hoje luto contra uma doença estúpida com nome estúpido e que me deixa com as feições estúpidas. Feições masculinizadas. Ironicamente e enfim meu rosto transmuta-se para o rosto masculino do filho homem que mamãe queria tanto.
Já não bastava ser feia, já não bastava ter o cabelo ruim...
Mamãe não tem culpa. Foram a época e a cultura em que ela viveu.
Acromegalia. Ave Maria.
Papai
Quando eu estava em coma, vi muitas coisas estranhas, assustadoras. Coisas que já aconteceram, estão acontecendo.
Havia e há uma casa onde as cores verde e azul se confundem, se misturam; é nessa casa que moram Paipreto, Mãevelha e mamãe, exatamente nessa ordem de chegada.
É uma casa simples, com muro baixo e um portãozinho simples. Passando o portão, tem um jardim que mais parece uma horta, nele tem pés de couve belíssimos, altos, fortes e saudáveis. Tem cebolinha verde com talos altos e bonitos e tudo muito fresquinho, saudável, bonito e verdinho.
Entra-se na casa e na mesa da cozinha têm ferramentas de trabalho e uma série de coisas e objetos que não consegui identificar claramente. São ferramentas de Paipreto. Saindo da cozinha, dá-se para o quintal. À direita tem uma espécie de casinha comprida que meu avô usa para guardar alguma coisa. O enorme quintal é de terra batida. No meio dele tem uma espécie de mesa grande de madeira. Paipreto trabalha em alguma coisa.
A rua dessa casa termina em um poderoso e belo rio e há belas árvores debruçadas em seu leito. Já estive nessa casa várias vezes antes, mas eu entrei como visita e não para ficar.
Durante o coma eu fui até essa casa verde-azul; eu era criança novamente. Do lado de dentro estavam Paipreto, Mãevelha e mamãe e eles seguravam o portão impedindo minha entrada. Havia uma luz morticia e uma porta e eu via papai encostado na parede logo atrás dessa porta. Papai não esboçava reação nenhuma e eu insistia para que mamãe ou meus avós abrissem o portão e me deixassem entrar.
E papai continuava ali, a esperar.
E eu sabia que se o portão fosse aberto papai entraria comigo, mas eu não queria que ele entrasse porque eu também sabia que se entrássemos, não voltaríamos mais, ficaríamos todos na casa e não acordaríamos mais.
Depois de desistir de entrar na casa, caminho até um cemitério. Está havendo um enterro. Estou a alguns túmulos de distância e consigo apenas ver um grande grupo de pessoas, flores e a terra revolvida. Flores frescas e bonitas. Digo para mim mesma que está acontecendo um enterro, mas não é o meu enterro, então de quem é?
Acordo com um balé de folhas e pétalas secas e mortas que bailam num redemoinho dentro de copo de vidro com água.
Acordo e olho em volta; vejo remédios pendurados em uma espécie de poste com pontas, um monitor barulhento com números verdes piscantes e um barulho irritante. Não consigo me mexer, quero sair dali e andar; ir para casa. Estou amarrada à cama.
O tempo passou. A vida continuou.
Mês passado papai começou a ficar mais doente, mais frágil. O levei e busquei no posto de saúde; dei-lhe broncas, chamei sua atenção para com os cuidados de sua saúde.
Domingo dia das mães Fubá veio me chamar às 8hs da manhã. Pensei comigo: "Será que papai piorou?" Não, não era nada com papai; Fubá viera me trazer flores pelo dia das mães.
Segunda-feira vou à auto-escola para fazer as aulas com o carro automático. Tudo bem.
Terça-feira faço aula noturna e, na rua mal iluminada, sinto um mal estar, um turbilhão invade minha mente e a casa verde-azul invade minha memória. Não faço uma boa aula, não me concentro, não consigo.
Quinta-feira, prova prática. Entro no carro, ligo a seta, faço parte do percurso. Um apagão de segundos me pega e me traz a casa na memória. Não passo na prova prática.
Volto para casa com uma dor de cabeça absurda.
Sexta-feira não saio de casa, a cabeça continua a doer.
Sábado, 8hs da manhã Rose me liga e diz que papai morreu.
Eu já sabia que isso ia acontecer, não seria surpresa, já esperava por isso. Mas doeu e eu chorei.
Mas eu achei bom, pois só assim papai vai descansar dessa vida física, pesada, dolorida.
Senti um alívio por saber que papai teimoso não teria mais que acordar de madrugada, encarar esse rigoroso frio paulistano, encarar barulho e poluição. Papai que não nos ouvia quando dizíamos para ele viajar, ir a Pernambuco e descansar. Lá seria bem acolhido. Mas não! Papai precisava trabalhar, não podia ficar longe do trabalho.
Papai está agora na casa verde-azul ajudando Paipreto a construir algo.
Um dia irei morar nessa casa verde-azul, mas antes irei visitá-la. Só visitá-la. Voltarei criança, trazida pelas mãos de Paipreto e ao se despedir, meu avô dirá que não posso ficar, que preciso voltar. Acordo adulta e chorando. Um pranto doloroso e bonito.
Papai parecia sereno, descansado. Estava com as feições calmas, parecia dormir tranquilo.
Papai estava bonito e tranquilo.
Pedi a Deus e ao povo lá de cima que cuidem do meu pai, que ele descanse, que tenha paz, felicidade, saúde.
Hoje fui à igreja encomendar a missa de sétimo dia e acender as velas que ele, papai, tinha pedido
Pedi a Deus e ao povo lá de cima que cuide de nós. Eles cuidarão.

Proteção
Espera-se que meninas sejam bonitinhas, lindinhas, meiguinhas e todos os “inhas” possíveis. Eu não. Nasci grandona, careca, branquela. Quando meus cabelos finalmente decidem aparecer, surgem em cachos castanhos que com o passar do tempo se tornam negros.
Fujo ao estereótipo da menina bonitinha de pele clarinha e cabelo lisinho.
Cresço e percebo que as meninas da minha escola começam a desenvolver corpos atraentes para os meninos. São bonitas, têm cabelos lisos e compridos, têm corpos bonitos. Eu não. Sou magérrima, alta, “Maria moleque”, volumosos cabelos cacheados, nenhum atrativo. Assumo uma postura masculinizada, sou durona, cuido dos meus irmãos, e desço a porrada nos meninos que queriam pegar meus irmãos meninos. Cuido  da casa, lavo roupas de caminhoneiros de uma transportadora vizinha para ajudar mamãe. Uma vez por mês levava meu irmão caçula para pesar, medir, tomar vacinas e pegar as seis latas de leite em pó que o posto de saúde dava.  O interessante era ter que carregá-lo nos braços mais a sacola com mamadeira, fralda e toda a parafernália infantil mais as seis latas de leite. Esperar mais de uma hora pelo ônibus carregando tudo isso num corpo magro infantil de onze anos! Acho que isso explica as quase duas dúzias de parafusos na minha coluna.
Trabalho muito em casa e ainda consigo boas notas. Não sou gênio, mas me esforço.
Vou às aulas de educação física. Sou péssima atleta, sou péssima no voleibol, apesar de gostar do esporte. Considero-me ruim em tudo, além do cabelo ruim e da feiúra. As outras meninas jogam vôlei tão bem, têm corpos bonitos e são tão bonitas. Por que eu não posso ser assim também?
Vejo muitas meninas bonitas e perfeitas com namorados. Eu nem pensar. Papai teria um ataque e me causaria outro. O ciúme de papai era insuportável, imagine se eu fosse bonita?!
Mas tempos depois essas mesmas meninas bonitas encontram-se grávidas e casam-se com seus namorados que tempos depois vão embora.
As meninas bonitas já não estão tão bonitas, na sua maioria.
Às vezes acho que não ser bonita de certa forma me ajudou e protegeu. Se eu fosse bonita correria o risco de ser assediada, de não ser estudiosa e de não amar os livros como amo. Talvez tivesse tido filhos, como as meninas bonitas. Talvez fosse até avó!
Talvez tenha sido melhor assim.
Evitava me olhar no espelho. Pra que perder tempo? Já sei como sou e como me viam.
Segui em frente com essa crença e continuei anos cuidando da casa, irmãos, estudando e lendo muito. Nunca me preocupei com minha aparência; até hoje não sei usar maquiagem. Acostumei-me a simplesmente tomar banho e vestir uma roupa limpa. Os cabelos cacheados sempre muito curtos e por isso mesmo muitas vezes fui confundida com um menino. Foram anos assim, bastava o cabelo começar a crescer e lá vinha a parentada falar para mamãe “cortar o cabelo dessa menina, pelo amor de Deus!”.
...
Aguardo autorização para mais uma cirurgia, a sexta. O plano de saúde usa a desculpa de que ainda está analisando materiais e eu, honestamente, não me sinto segura e confiante em fazer essa cirurgia e nem estou me estressando com a demora e as desculpas do convênio. Tenho certo temor, desconforto, desconfiança. Lembro o que passei durante o coma, voltam à memória as imagens e situações pelas quais passei. Os tormentos, as lutas... Meu Deus! De novo não! Lembro de um trecho da oração: “... livrai-nos de todo o mal, amém”.
Continuo com o tratamento; são remédios, exames, consultas, licenças médicas,dores, desconforto, olhares das pessoas, dificuldade em encontrar calçados e a boa e velha batalha contra os cachos rebeldes de meu cabelo “ruim”. Isso tudo é muito besta, eu sei, mas é o meu pilar, o que me alimenta e me destrói.
O gelo, a neve e o frio. Contêineres sendo colocados dentro de caminhões para os homens do gelo transportarem seu conteúdo. Os homens aguardam enquanto seus rostos são cobertos pela neve. Homens de pele, olhos e cabelos claríssimos. Vi esses homens, senti o frio, o gelo tocar no meu rosto, senti a dor de respirar o ar gelado. O que fui eu fazer nesse fim de mundo gelado?
Um grande navio, mar gelado, agitado. Um homem pequenino de pele escura e cabelos lisos me observava. Os passageiros desse navio vão a um hotel para participar de uma premiação. O navio está ancorado em um porto do mesmo país gélido dos caminhoneiros. Frio, muito frio. Mas antes, as pessoas se preparam para o evento. Fico no navio com outras pessoas e nos é servida uma comida estranha; uma espécie de geléia de mocotó rosa e borrachuda. Passo mal e vou para fora para tomar ar. Frio demais. Alguém entra no navio e atira em uma das pessoas, era um cientista que ia para a tal premiação; um homem de família. O alvo da bala seria eu, mas o atirador errou e a partir daí começou a perseguição. Queriam me matar a todo custo.  
Acordo em uma sala de UTI. Todos me odeiam e querem que eu morra. Uma enfermeira mostra para os colegas onde estou instalada. Ela me dá um copo com um líquido branco e doce para eu beber. Mas eu não bebo e ela resolve então injetar isso na minha veia. Não morro. A enfermeira abre a cortina e aponta uma pequena arma para minha cabeça, a arma trava. Outros enfermeiros tentam fazer o mesmo, mas a arma falha. Após tentativas frustradas, eis que surge um novo atirador que jura conseguir fazer o que todos os outros não conseguiram: acabar comigo. Mas eu conheço esse atirador! Ele titubeia, chora, não consegue acertar. Não encontra meu leito, passa por ele várias vezes e em não conseguir me matar, pede ajuda a outras pessoas. São pessoas de sua família e até da minha.
Surpreendo-me com essas pessoas. Eu as julgava neutras, imparciais e indiferentes e até “boazinhas”. E são as bozinhas que querem meu fim!
Estão todos impacientes e bravos com a minha sobrevivência e a incompetência daqueles que frustraram as tentativas de tirar minha vida. Não cuidam de mim, não me alimentam e não me dão banho. Sinto-me suja, abandonada.
Queria que entendessem que não sou aquela pessoa horrível que acreditam que sou e que não prejudiquei ninguém e que nunca o faria. Não sei por que pensam isso de mim, porque me julgam de maneira tão cruel e voraz. Querem devorar minha vida, minha existência, minha alma.
Estou presa à cama e fico observando o vai e vem de médicos e enfermeiros. Todos os outros pacientes são tratados, menos eu. Aparece enfim uma enfermeira que se oferece para cuidar de mim. Ela me dá banho, lava meus cabelos, conversa comigo usando uma linguagem infantil, mas quando está com os outros colegas, fala mal de mim e diz que não quer ser mais responsável por meus cuidados. Me chama de nomes feios.
Continuo amarrada à cama e me mexo muito, tentando sair e me esconder, pois sinto cada vez mais próxima a chegada de mais pessoas para me matar. Digo à minha irmã que vamos fugir e sair do país. Estou num estado de semi consciência, misturo sonho/coma com a realidade. Minha irmã, médicos e enfermeiros dizem que são sintomas causados pelos fortes remédios que me dão.
Fico nesse estado de consciência alternada com inconsciência. Não sei o que é verdade, o que é ilusão ou sonho e, mesmo após acordar do coma e começar a recobrar a memória, ainda confundo algumas coisas, ainda acho que tem gente me observando e esperando o melhor momento para me matar. Peço para a enfermeira falar mais baixo, pois acho que ela fala alto para que meu algoz possa ouvir e me localizar.
Minhas irmãs vêm me visitar e digo a elas para chamarem a polícia e a mídia, tento convencê-las de que querem me matar. Fico irritada por elas não acreditarem em mim. Por que não acreditam em mim? Por que querem me matar?
O comportamento dos enfermeiros e médicos muda. Agora todos rezam e pedem a Deus por mim, em suas diferentes fés, crenças e religiões. De repente o meu algoz volta para me ver e suborna enfermeiros para que cuidem bem de mim. As coisas parecem ficar bem, já não sou mais tão odiada.
O estado de coma é uma viagem. Vamos de um lugar a outro em frações de segundo. Essa viagem não respeita limites de tempo, espaço, velocidade ou qualquer outra lei física. Fui criança, viajei para um país gelado, fui a um navio, voltei ao tempo. Fui a uma clínica de séculos passados onde os elegantes doutores usavam fraque e o tratamento incluía banhos, massagens e chás.
Fui uma partícula, uma centelha de luz. Vi a Terra girar e tentar voltar ao eixo, como se fosse um cubo mágico. O tempo mudava, viajávamos nele. Os trens partiam e chegavam. Fui colocada numa balsa para ser levada pelas águas do rio. O tocar do sino avisando para liberar a balsa me causou tristeza profunda. Solidão, abandono e tristeza.
Em outro momento estou em uma sala cheia de pessoas vestidas de branco. Essas pessoas têm a pele de cor estranha e pergunto a uma delas porque sou a única com a pele de cor diferente. Ela me diz que aquelas pessoas estão mortas e eu ainda não.
Estou em outro leito e vejo tudo e todos engordurados, ensebados e nojentos. Pergunto-me como podem os médicos realizar cirurgia sem o mínimo de higiene! As cortinas, lençóis, tudo está engordurado. Não volto ao quarto e vejo as faxineiras limpando o local onde eu estava. Durmo e vejo uma árvore dourada de pequenas folhas douradas. As pessoas pegam uma folha e vão para outro lugar. O vento balança a árvore e leva as folhas para longe de mim, não consigo alcançá-las.
Um tronco de árvore cortado, um homem ajoelhado rezando, um luar iluminando esse homem de vestes brancas e rústicas.
Evito olhar para cima com medo de ver coisas e pessoas dentro da lâmpada. Tento dormir para descansar, mas tenho medo de ver coisas piores. Vejo de cima meu corpo amarrado à cama; estou muito inchada.
Alguém me diz o que aconteceu comigo e porque estou ali. Segundo a explicação, meu algoz atirou em minha cabeça e explodiu uma parte de meu crânio e cérebro e por esse motivo estou ali naquela cama de hospital. Irritei meu algoz e o fiz fazer o que fez!
Em um momento de consciência, peço à minha irmã um espelho; quero ver como estou sem a metade do rosto. Me surpreendo ao ver que estou inteira, meu rosto está normal, não falta pedaço! Minha irmã não entende de onde tirei essa idéia.
Reparo que há várias pessoas na mesma ala que eu. Para cada pessoa há uma espécie de quadro informativo com o nome do paciente e seu país de origem. A língua falada e a localização geográfica do país. São pessoas na sua maioria de países do leste europeu e da Eurásia. Há um velhinho que me provoca e faz sinais com o pé de que serei enterrada. Mas o velho muda seu comportamento e tenta me proteger. Ele tenta sair de sua cama para me ajudar. O velho morre e é coberto por um manto grená e é colocada uma coroa em sua cabeça; o ancião pertencia a uma nobre família desses países mostrados nos gráficos.
Em outra ala há vários idosos de origem japonesa. São colocados alimentos estranhos em seus leitos. Acho estranho colocar alimentos daquele tipo para pessoas em coma, é claro que elas não poderão comer, estão imobilizadas! Vejo bandejas colocadas aos pés da cama dos pacientes e nessas bandejas tem tartarugas, patos e outros animais estranhos. Em outras bandejas são colocados pães e bolos. Os alimentos são oferecidos de acordo com o país e a cultura dos pacientes.
Vejo crianças internadas e na mesma ala que os adultos. Um garotinho tem medo de mim por eu ter apenas metade do crânio e do cérebro. Minha aparência deformada o assusta e isso causa revolta entre os familiares que pedem minha remoção daquele quarto. Esse garotinho tem uma irmã e ambos sofrem de uma doença que os envelhece precocemente.  O garoto tem picos de pressão alta toda vez que me vê e os médicos precisam ser rápidos para socorrê-lo. Vejo o garoto ficar pálido, desmaiar e o sangue escorrer por seu nariz, olhos, boca e ouvidos. Sou culpada por isso.
Os enfermeiros fazem patuás para o garoto. Dão-lhe objetos de símbolo religioso e o ensinam a rezar para que ele possa se sentir protegido de mim.
Uma garotinha de longos cabelos loiros come pães doces de costas para mim; seus pais dizem para ela me oferecer e ela se nega e diz não gostar de mim.
Uma enfermeira jovem e atrapalhada cuida de mim, mas leva broncas o tempo todo. Não sabe aplicar os remédios e demora em fazer a limpeza e organização de meu leito. Vejo que ela tem dificuldade em retirar os dois vasos brancos com uma imagem azul de Nossa Senhora. Ela troca a água desses vasos e coloca flores novas. Os vasos são pesados para ela.
Ouço as pessoas reclamarem constantemente que minha aparência deformada assusta aos pacientes, as crianças e aos visitantes. Vejo meu irmão e minha cunhada ao meu lado fazendo orações. Eu empurro meu irmão e peço que vá embora, pois uma paciente oriental está tentando rezar por seu marido e a forte voz do meu irmão atrapalha sua oração. Ela chama os seguranças e peço que meu irmão vá embora para evitar mais problemas. Minha cunhada pergunta se ela pode ficar e eu digo que sim.
Depois de voltar à vida, meu irmão comentou comigo que se sentiu magoado por eu tê-lo empurrado. Disse a ele que não fiz de propósito, eu não estava em posse de minhas faculdades mentais.
Vejo uma jovem senhora que é deficiente física, tem as pernas e pés juntos como se fosse uma sereia. Ela vende artesanato na porta do metrô e do hospital. Foi atacada por bandidos que a roubaram e espancaram. Ela é trazido para a mesma ala onde estou e se assusta ao me ver. Pede aos enfermeiros que abaixem uma cortina para me evitar. Ela tem um sotaque de pessoas de países latinos. Ela traz consigo várias ervas diferentes e faz chás com elas. Uma paciente se engasga com o chá e passa mal. É hipertensa e vejo o sangue escorrer por seu rosto. Outra senhora lembra mamãe. Ela é faxineira do hospital, mas caiu durante a limpeza e quebrou a perna. Ouço pedir comida aos enfermeiros e eles dizem para ela esperar os exames para ver sua glicemia.
Ela sorri para mim.
Era tudo muito confuso; ora as pessoas me odiavam e queriam meu fim, ora lutavam e rezavam por mim.
Chegaram a fazer apostas de quanto eu iria morrer, diziam que daquela noite eu não passaria. Trouxeram um caixão e o deixaram em frente ao meu leito para que assim que eu morresse fosse feita a minha remoção do local. Mas não há mais leitos e o hospital está lotado, o caixão é transformado em cama. Eu fico olhando para aquele caixão, vejo as pessoas andarem pra lá e pra cá e me ignorarem. Chega um novo paciente que é colocado nessa cama caixão.
Em outro local vejo meu corpo arrumado e vestido em um caixão, já pronto para o velório. Estou vestida com uma calça preta e blusa verde, alguém pinta meus lábios com um batom vermelho forte.
Volto à ala do hospital e vejo muitas pessoas amontoadas num pequeno espaço. São mulheres paridas, crianças recém-nascidas, bebês e adultos. Muitos estão no chão por não haver espaço para todos. Vejo as enfermeiras preparar as mamadeiras das crianças.
Tudo é tão confuso. Não consigo me fazer entender. Choro ao sentir a presença de pessoas que querem me machucar. Tento mostrar que sou inocente, que não causei mal algum a ninguém.
Em um grande corredor vejo várias camas com pacientes e seus familiares. Os enfermeiros param para conversar com essas pessoas em vez de trabalhar. Falam de mim e fazem apostas. Uma enfermeira é subornada para me aplicar um remédio letal, que fará minha pressão arterial subir e me matar. Olho para o aparelho e vejo os números subindo disparados; tento gritar e chamar meu médico. A enfermeira se arrepende e retira o remédio da minha veia. O médico discute com as enfermeiras que dizem ser melhor me deixar de lado e se dedicarem ao tratamento das crianças que tem a doença do envelhecimento. O médico argumenta, diz que aquelas crianças não terão futuro, estão condenadas a morrer e que eu posso acordar e voltar a ter uma vida normal.
Sou observada e vigiada o tempo todo. Tento pedir ajuda.

Continua...

















Um comentário:

  1. Cara Rejane, li seu relato. Que vivências intensas essa nossa doença, acromegalia, lhe trouxe...Quisera não tivesse que passar por tanto sofrimento... Revela em seu texto a grandeza de seu espírito que fará de todo esse enredo a sua fortaleza de ser nesse espaço-tempo de viver que você tão bem descreve como sem fim nem começo. Um abraço fraterno. Nathália

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