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sexta-feira, 28 de junho de 2013

Fogueira

                                   


Último dia de aula e os pequenos foram para a escola vestidos de caipirinhas. Tão bonitinhos.
Há algum tempo fiquei chocada ao ouvir que os alunos dançariam uma "dança country" e perguntei, meio sem querer querendo: "Mas não é dança caipira?"
Essa mania brasileira de imitar, copiar e usar tudo o que é gringo, principalmente americano. Na boa.
Bom...
Fui à casa da minha irmã Rosi para ficar com minha sobrinha Beatriz, a terrível, e no caminho até lá vejo muitos e muitas caipirinhas adoráveis em vestidos floridos e muito coloridos e calças remendadas, carinhas pintadas, tudo muito gracioso.
Bateu uma saudade de antigamente, de quando nossas tradições nordestinas eram mais fortes e de quando nosso bairro, outrora rural, nos permitia sair à cata de madeira para a fogueira de São João.
Era muito divertido. Levávamos baldes, sacolas e carrinhos de feira para trazermos a madeira que seria queimada na fogueira de Santo Antonio, São Pedro e São João. Era uma festa para a molecada da vizinhança. 
As pessoas passavam na rua e viam aquela fogueira grande e bonita; mamãe fazia bolo de fubá, canjica com leite de coco e amendoim; papai assava as batatas doces; os caminhoneiros gaúchos aproveitavam para assar uma carninha, para ferver água para o chimarrão e para contar causos românticos de amores que ficaram lá pelas  bandas do Sul. Era tudo tão simples e tão bonito.
Hoje está tudo tão "mudérno", cimentado, asfaltado, engradado, segurado...
O bairro cresceu, está cheio de prédios, transportadoras, muito cimento e muito asfalto. 
As casas com quintais de terra não existem mais e assim não dá para fazer a fogueira dos santos juninos.
Estamos adultos, papai e mamãe se foram, as chácaras e as ruas de terra não existem mais, os caminhoneiros gaúchos devem estar bem velhinhos...
Só ficou a saudade.






terça-feira, 4 de setembro de 2012

Pronúncia & "Cow Center"

                                    

Essa semana que passou me arretei-me e me estressei com atendentes de telemarketing, que agora são operadores de call center. Tá.
Comentei com minha irmã Rosi e já falei aqui também sobre a má qualidade do atendimento, produtos e serviços prestados e oferecidos por esses profissionais. Não são todos, claro, há exceções.
Parece que São Paulo se transformou nos Estados Unidos no quesito importação de mão de obra barata e de qualidade duvidosa, pois com o salário de um bom profissional pode-se pagar o salário de meia dúzia de pessoas inexperientes e mal treinadas. As empresas querem lucro fácil e rápido mas se esquecem de que é preciso treinar seu pessoal.
Liguei para o Call Center, pronunciado "cau center" e cuja pronúncia deveria ser algo como "cól", pois "cau" é a pronúncia de "cow", vaca em inglês. Por exemplo: "cowboy - caubói".
O mesmo acontece com celulares colocados no modo "vibra call" e pela pronúncia das pessoas, vira uma vaca vibradora, ou seja: "vibra cow/cau".
Beleza?
Bom...
Liguei, fui transferida inúmeras vezes e tive que repetir nome, CPF, data de nascimento, endereço de instalação, blá, blá, blá...
Quando dizia os números pedidos pela operadora de call center, fui interrompida e "corrigida" pela simpática e lenta mocinha: "É trêis e deiz, senhora?"
"Não. São três e dez".
A mocinha não entendeu e me corrigiu repetindo o "trêis e o deiz".
Muitas pessoas me perguntam se sou do Sul do Brasil e digo que não, sou pernambucana. Tenho parentes no Paraná e tive contatos com famílias gaúchas quando era jovem.
Aí dizem: "Ah, então é por isso que fala assim". Assim como? Dez, três, paz, vez e não trêis, deiz, veiz,  paiz?
Mas essa é a pronúncia correta e não quero consertar o mundo, mas muito orgulho-me de minha língua pátria e procuro respeitá-la, ao contrário dos abusos que estão cometendo contra a inculta e bela Língua Portuguesa. Já falei sobre isso aqui na postagem com o sugestivo título "Língua Portuguesa". Confere lá.
Também não quero ser maluca igual à personagem do livro "Triste fim de Policarpo Quaresma" de Lima Barreto, um de meus autores nacionais favoritos.
Policarpo Quaresma era um nacionalista apaixonado por sua pátria. 
Não vou falar mais sobre o livro, ler é mais interessante.
Bom, depois de tudo isso ainda estou no aguardo do "problema vai estar sendo resolvido, senhora".
Como dizia papai: "Espero em Deus que sim".
Amém.

                                    

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Mamíferos carnívoros, herbívoros e onívoros

                                        

Não estou falando sobre animais carnívoros, herbívoros e onívoros, estou falando sobre minha família. Explico.
Minha irmã Rosi me conta que preparava o almoço e perguntou à Beatriz o que ela queria, bife ou carne seca e ela responde: "Os dois".
Rosi tenta manter uma dieta balanceada e meio natureba e prepara carnes brancas como peixe e frango, mas Beatriz sempre pede uma carninha, um bifinho.
Beatriz gosta de dizer: "Eu sou carnívora que nem meu pai".
Eu gosto de um churrasquinho, mas raramente preparo carnes, cozinho legumes e faço saladinhas verdes temperadas com azeite de oliva e vinagre balsâmico. Às vezes me dá vontade de comer carne cozida com legumes e ligo para minha irmã Rosi ou meu cunhado Pepê e pergunto: "Que carne é boa para fazer carne de panela?", e recebo uma aula sobre carnes e cortes. Não entendo desses nomes dados, só sei que é carne e pronto.
Adoro carne seca com cuscuz nordestino.
Uma vez estava cansada de leguminhos e arroz integral e suquinho com soja e fiz uma comida danada de boa, meio mineirinha, sabe? Fiz uma farofa com linguiça e bacon e adicionei feijão e couve; ficou "bão dimais da conta, sô!"
Já falei aqui e repito, mineiros e baianos têm a culinária mais deliciosa do Brasil, acho eu, mas gosto dos bolos Souza Leão, bolo de macaxeira, tapioca com queijo coalho lá do meu Pernambuco e aprendi a apreciar um delicioso churrasco com os gaúchos trilegais.
E falando sobre carnes e outros alimentos, estava me lembrando e rindo sozinha das "inguinóranças" de papai, claro. Em décadas passadas a inflamação era galopante e os preços subiam sem controle, comprar carne era difícil e mamãe improvisava com peixes, frango, linguiça, o tal do Spam e quando a situação financeira estava complicada, mamãe fazia omeletes, ovo frito, cozido...
Papai vinha almoçar em casa e encontrava a mesa posta com arroz, feijão, farinha e ovo. Vixe! Papai ficava doido: "Mas eu trabalho que nem um fio duma égua e não tenho direito que comer um taco (pedaço) de carne?! Num vô cumê não!"
Mamãe ouvia pacientemente e depois dizia: "Oxe Dedé, e tu qué eu me vire em carne ou que vá roubar pra botar carne dentro de casa é? Tu qué que eu faça o que, homi? Quer comer coma, senão, lasque-se!".
Nossa Senhora! E o sermão prosseguia...
Outro alimento muito apreciado por nossa família é o leite. Meus irmãos caçulas Fubá e Renata adoram um leitinho com achocolatados, tomam litros. Rosi também gosta de leite, mas é mais moderada. Por outro lado, há outros de nós que não gostam de leite: eu, Beatriz e Vinícius. Compro leite de soja pra mim e fica muito bom batido com frutas.
Eu compro leite para meus gatos que adoram tomar um leitinho antes de irem para a cama. Ébano Nêgo Lindo se esfrega em minhas pernas e mia olhando para a geladeira, ele sabe que o leite está  lá.
E por falar em meu neguinho lindo, ele está bem melhor, graças a Deus. Comeu a ração que eu fui comprar, pois ninguém queria a que tinha aqui, tomou seu leitinho e agora dorme. 
Eu saí para comprar a ração favorita da gataiada e deixei Ébano deitadinho em um canto fofo que preparei para ele; saí preocupada e pedi a Deus e ao Povo lá de cima que cuidassem do meu gato, que trouxessem saúde para ele. Voltei para casa e o encontrei de pé, andando pelo jardim e cavando minhas plantas; olhei para o céu e agradeci.
Acho que Deus e o Povo lá de cima agiram rapidinho porque não querem ser pentelhados por mim a pedir pela bicharada. Mas eu só peço coisas boas, para mim, para minha família e para as pessoas que gosto. Coisas boas como saúde, solução de problemas que nos aporrinham, paz, alegrias...
Não peço riqueza nem boniteza, mas eu queria ganhar na Mega Sena para ajudar a bicharada carente. 
Amém.

                                          

domingo, 15 de julho de 2012

Pedras

                                            


Sexta-feira que passou fui à cabeleireira para cortar meu cabelo bandido: ou está preso ou está armado.
Enquanto aguardava, fui observada, analisada e estranhada pelas pessoas que entravam e saíam do local. A filha da cabeleireira (palavra difícil) disse: "Meu irmão pensou que você era homem". Uma senhora entra escandalosamente, gesticulando e ignorando a todos que estavam lá: "O fulana, tu seca meu cabelo?", mas quando me viu fez cara de susto e mudou de ideia: "Não precisa não, meu cabelo seca sozinho".
Estou cansada de ouvir isso. Estou cansada de ser objeto de olhares, estranhamentos e o cacete!
Estou cansada de me olhar no espelho procurando pelos supostos traços masculinos e, honestamente, não vejo nada demais; apenas minha cara grande, branca e invocada.
Detesto ser encarada e medida de baixo a cima; se quiser perguntar, pergunta, $#%@#! mas não fica me olhando! 
Bom...
Eu fiquei na minha e ouvia a conversa da mulherada enquanto a cabeleireira trabalhava na minha juba rebelde; foram vários os assuntos tratados:
"Olhe, tu sabia que fulana pegou meu ferro e meu liquidificador emprestados e não devolveu ainda? Ela estragou meu ferro e eu tive que comprar outro; comprei umas marcas que não prestaram não. Olhe, se tu for comprar ferro, só compre 'béquidéqui' (Black&Decker)".
Falaram das vizinhas que não arrumam a casa, das filhas das vizinhas que ficam de conversa pelas ruas da comunidade, falaram de viagens, de preços, do tempo...
Terminado o serviço, paguei e deixei o local com as matracas falantes e fui à lojinha do meu irmão Fubá. Comprei os últimos pães que tinha e conversava com minha irmã Renata quando entram dois caminhoneiros gaúchos: "Tu tens pão?".
Eu disse: "Comprei os dez últimos, mas se você quiser, podemos dividir. Quantos você quer?"
Dividi os pães com os gaúchos e ainda conversei um bocadinho com eles, adoro o sotaque sulista. 
Subi até a casa do meu irmão e dali a pouco chegaram minhas irmãs Rosi e Lila com a família. Comemos pizza, contamos causos, rimos.
Lila levou a pequena Giovanna de cabelos cacheados e a bebezinha Yasmim e enquanto isso Rafaela se lambuzava com um chocolate. Preta, mãe de Rafaela de nove meses, segura Yasmim de um mês e diz: "Ai que saudade de quando a Rafa era pequena".
Hora de ir embora. 
Caminhamos até nossos carros e na rua encontro um casal de alunos que me fazem a mesma pergunta: "Quando a senhora volta?"
Fiquei feliz pelo carinho e pelo desejo e interesse de minha volta; já encontrei alunos que me disseram: "Volta logo, professora, pelo amor de Deus! Não aguentamos mais a professora fulana, ela é muito chata!".
Voltei para casa mais aliviada, como se um bálsamo fosse passado sobre ferida aberta.
Nem tudo pode ser cem por cento bom ou cem por cento ruim. Temos dias bons, outros nem tanto.
Alguns dias as pedras no caminho são mais fáceis de tirar, outros dias não.
E assim a vida prossegue.
Minha vida de acromegálica.
É isso.


                                            No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra 
tinha uma pedra no meio do caminho 
tinha uma pedra 
no meio do caminho tinha uma pedra. 
Nunca me esquecerei desse acontecimento 
na vida de minhas retinas tão fatigadas. 
Nunca me esquecerei que no meio do caminho 
tinha uma pedra 
tinha uma pedra no meio do caminho 
no meio do caminho tinha uma pedra

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 7 de abril de 2012

Carta de amor

                                       


Havíamos nos mudado para a pequena casa de quintal grande. Era na mesma rua da casa da majestosa mangueira onde chorei ao me despedir de mamãe que fora ao hospital buscar minha irmã Rosi.
Era final de ano eu havia concluído a quarta série e mamãe já havia feito a matrícula para a quinta série. Mesmo com todos os problemas, mesmo com minha infância e adolescência roubadas e transformadas em obrigações, responsabilidades e vida de gente grande eu conseguia tirar boas notas na escola.
Eu não era gênio, mas conseguia me sair bem.
Foi nessa casa em que mamãe eu lavávamos as roupas dos caminhoneiros gaúchos e que meus irmãos ficavam sós na companhia do cachorro Bobbie até mamãe voltar do trabalho.
Vivemos fortes emoções nessa pequena casa de quintal grande.
Foi nessa casa que conhecemos novos vizinhos e meus irmãos arteiros fizeram novas amizades com meninos mais arteiros ainda. Ave Maria.
Foi nessa casa que recebi minha primeira carta de amor. Muito romântico mesmo.
Nossa casa era bem simples e admirávamos as belas casas do bairro e da nossa vizinhança.
Numa bela casa com garagem, azulejo, piso e tudo de bonito que uma casa de "rico" deveria ter, morava uma família de quatros pessoas: os pais e dois irmãos, todos galegos branquelos de olhos azuis. 
Um dos irmãos era um menino gorducho, com cabelos loiríssimos, olhos muitos azuis e bochecha rosadas. Parecia que tinha passado blush e a molecada da rua dizia que ele tinha duas mortadelas na bochecha. O irmão mais velho já estava na faculdade e era um rapaz alto, magro e elegante.
O gorducho chamava-se Sérgio e a mãe o cobria de mimos, daí seu corpinho vitaminado. Alguns pais acham que amor materno/paterno só pode ser demonstrado com excesso de comida, brinquedos, mimos, manhas e falta de limites.
Bom...
Eu estava com onze anos e estava na quinta série e Sérgio era dois anos mais velho que eu e estudava em escola particular.
Um dia a filha da vizinha me chama pelo muro e me entrega uma folha de caderno toda dobradinha e disse: "Mandaram entregar pra você". Eu não entendi muita coisa a princípio e perguntei meio impaciente: "Tá. Mas quem?"
Ela não disse.
Entrei em casa, desdobrei a folha do caderno e vi que era uma carta de amor toda escrita com letra bonita e cuidadosa. E era do Sérgio, o vizinho gorducho.
Fiquei encantada e orgulhosa, pois um menino estava apaixonado por mim!
Mas Sérgio não era bem o meu tipo favorito de "homem".
Mas gostei muito da carta de amor e a lia e relia inúmeras vezes durante o dia e a escondera debaixo do meu colchão. 
Não sei como, mas papai descobriu a tal carta, a rasgou em pedacinhos e infernizou minha vida durante o dia inteiro. Jesus!
Papai dizia que ia falar com os pais do menino, que ele não tinha filha de onze anos pra namorar galalau taludo e sem vergonha...E a ladainha prosseguia.
Mamãe tentava amenizar e dizia que era normal, que não tinha nada demais e que eu e o menino éramos apenas crianças. 
Custou a mamãe convencer papai a não perturbar os pais do meu Romeu apaixonado.
Sei que tempos depois nos mudamos novamente e eu nunca mais vi ou soube do menino gorducho apaixonado com cara de mortadela.


                                       





segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Olhar

                                         




Dirigindo pelas ruas do meu bairro e relembrando coisas, fatos e causos de anos passados.
Morávamos em uma casa pequenina de dois cômodos e com banheiro do lado de fora. O quintal da casa era enorme e cheio de plantas. Próximo ao grande portão de madeira havia o relógio da água e gostávamos de subir nele para ora esperar por mamãe e vê-la surgir na esquina e ora roubar as cerejas da cerejeira da vizinha.
Segundo nossos argumentos nem tão politicamente corretos, a parte da árvore que dava para nosso quintal pertencia a nós. Então tínhamos o direito de nos saborear com as cerejas sem nos preocuparmos com as reclamações da vizinha, sua dona.
Na rua de nossa casa pequenina havia uma transportadora de gaúchos. O Rio Grande do Sul tem grande tradição no transporte de cargas e caminhões aqui em São Paulo. Outra coisa bacana é o fato de ser muito comum mulheres caminhoneiras desse estado brasileiro. Eu achava lindo ver mulheres dirigindo, ainda mais se fossem caminhões.
Os caminhoneiros sempre iam à nossa casa e adoravam conversar com mamãe, que ouvia pacientemente as histórias deles e os aconselhava sempre a não beber e dirigir, a descansar antes de pegar a estrada, a cuidar bem da mulher e dos filhos, a não tomar remédios para ficarem acordados a noite toda; enfim, conselhos de mãe mesmo.
Alguns deles viajavam com as esposas e filhos e os deixavam em nossa casa quando precisavam resolver problemas na capital paulistana.
Nos fins de semana faziam churrasco tipicamente gaúcho, tomavam vinho e cerveja, cantavam e até choravam. Os mais solitários e apaixonados lembravam dos filhos e das esposas que estavam longe e se debulhavam em lágrimas. Outros choravam dores de corno mesmo.
Era uma choradeira e bebedeira sem fim.
Na manhã seguinte apareciam em casa todos tímidos e com vergonha da choradeira e declarações da noite anterior. Mamãe dizia: "Oxe, deixe disso, meus filhos. Chorar é normal, você não é gente? Então. Gente chora. Quem foi que disse que homem não chora? Oxe, deixe de bobagem; entre aqui, venha tomar um café". 
E dali a pouco o chorão apaixonado já estava sorrindo e planejando mais um churrasco com cantoria e lágrimas, claro.
Muitos deles pediam para mamãe lavar e passar suas roupas. Eu ajudava mamãe nessa tarefa. Mamãe não queria receber, era uma forma de retribuir pelos churrascos e mimos trazidos do sul do Brasil. Nos davam pães típicos da região, as chamadas cucas, queijos, salames, as próprias carnes para o churrasco e tudo o que sobrasse das cargas dos caminhões. Às vezes o cliente não queria receber as cargas por estarem próximas do prazo de validade, então o gerente da transportadora autorizava os caminhoneiros e ajudantes a dividi-las entre eles.
Era legal ouvir aquele sotaque cantado e bonito.
Era legal ver aquelas crianças e pessoas de pele tão clarinha que pareciam vindas de outro país.
Era legal ver a forma como assavam a carne, bem diferente de nós.
Estranhávamos o sabor do chimarrão e dizíamos que tinha gosto de café forte sem açúcar.
Achávamos engraçado aquelas calças largas que alguns deles usavam e ríamos do jeito que eles usavam o cobertor: faziam um buraco no meio que desse para passar a cabeça e o usavam como um xale. Mamãe dizia que estragavam o cobertor.
Uma bela tarde de sol volto da escola onde fora fazer minha matrícula para o segundo grau (Ensino Médio) e vejo uma carreta gigante estacionada em frente de nossa casa. Apresso os passos para chegar logo, achando que deve ser algum caminhoneiro que fora buscar as roupas limpas para poder seguir viagem. Eu tinha lavado as roupas e as deixado no varal para secar e iria passá-las quando voltasse da escola.
Entro em casa e começo a tirar as roupas do varal e paro para olhar a carreta. Sabe quando tem-se a sensação de que alguém nos está observando?
Olho para a cabine e vejo um homem moreno e bonitão secando os cabelos molhados de quem tinha acabado de sair do banho. Ele para e olha para mim e eu devolvo o olhar. Eu pensei que ele iria perguntar alguma coisa a respeito de roupas lavadas e passadas. Mas não. Não houve palavras, apenas olhares.
Demorei o triplo do tempo para tirar as roupas do varal. Eu olhava para aquele homem bonito dentro daquela cabine de caminhão. Ele olhava para mim.
Me perguntava: "Será que viaja sozinho? Será que tem esposa e filhos? Deve ter; bonitão assim".
Aqueles momentos de troca de olhares foram como uma eternidade, uma paz. Alguém olhava para mim e olhava com certo interesse. Interesse romântico e não interesses vulgares como a maioria nos dias de hoje. 
Senti-me importante, apreciada, querida. 
Se ele olha para mim é porque gostou e se gostou é porque não me achou feia. Foi isso que me deixou feliz por alguns momentos.
Mas dali a pouco mamãe volta do trabalho e pergunta se as roupas dos moços caminhoneiros estão prontas, se os irmãos menores já tomaram banho, se o feijão já está no fogo, se isso se aquilo.
Entro em casa e me entrego às infindáveis tarefas. Anoitece. Tomamos banho, jantamos, assistimos a novela e vamos para a cama. Exatamente nessa ordem, de acordo com os ditames de papai. Amanhã tudo de novo. 
Me levanto bem cedo na esperança de ver a carreta gigante estacionada na frente de casa. Mas não estava mais; havia outra no lugar.
E todas as tardes eu esperava ansiosamente pela carreta do moreno bonitão. Esperava trocar mais olhares e sorrisos tímidos.
Mas nunca mais vi a carreta. Nunca mais vi o moreno bonito.
A transportadora mudou-se para outro endereço e meses depois nós também nos mudamos de casa.
E à vezes a imagem do caminhoneiro bonito vem à minha cabeça e viajo nas doces e curtas memórias de um belo fim de tarde. Um belo fim de tarde sob belos olhares de um belo caminhoneiro.