segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Olhar

                                         




Dirigindo pelas ruas do meu bairro e relembrando coisas, fatos e causos de anos passados.
Morávamos em uma casa pequenina de dois cômodos e com banheiro do lado de fora. O quintal da casa era enorme e cheio de plantas. Próximo ao grande portão de madeira havia o relógio da água e gostávamos de subir nele para ora esperar por mamãe e vê-la surgir na esquina e ora roubar as cerejas da cerejeira da vizinha.
Segundo nossos argumentos nem tão politicamente corretos, a parte da árvore que dava para nosso quintal pertencia a nós. Então tínhamos o direito de nos saborear com as cerejas sem nos preocuparmos com as reclamações da vizinha, sua dona.
Na rua de nossa casa pequenina havia uma transportadora de gaúchos. O Rio Grande do Sul tem grande tradição no transporte de cargas e caminhões aqui em São Paulo. Outra coisa bacana é o fato de ser muito comum mulheres caminhoneiras desse estado brasileiro. Eu achava lindo ver mulheres dirigindo, ainda mais se fossem caminhões.
Os caminhoneiros sempre iam à nossa casa e adoravam conversar com mamãe, que ouvia pacientemente as histórias deles e os aconselhava sempre a não beber e dirigir, a descansar antes de pegar a estrada, a cuidar bem da mulher e dos filhos, a não tomar remédios para ficarem acordados a noite toda; enfim, conselhos de mãe mesmo.
Alguns deles viajavam com as esposas e filhos e os deixavam em nossa casa quando precisavam resolver problemas na capital paulistana.
Nos fins de semana faziam churrasco tipicamente gaúcho, tomavam vinho e cerveja, cantavam e até choravam. Os mais solitários e apaixonados lembravam dos filhos e das esposas que estavam longe e se debulhavam em lágrimas. Outros choravam dores de corno mesmo.
Era uma choradeira e bebedeira sem fim.
Na manhã seguinte apareciam em casa todos tímidos e com vergonha da choradeira e declarações da noite anterior. Mamãe dizia: "Oxe, deixe disso, meus filhos. Chorar é normal, você não é gente? Então. Gente chora. Quem foi que disse que homem não chora? Oxe, deixe de bobagem; entre aqui, venha tomar um café". 
E dali a pouco o chorão apaixonado já estava sorrindo e planejando mais um churrasco com cantoria e lágrimas, claro.
Muitos deles pediam para mamãe lavar e passar suas roupas. Eu ajudava mamãe nessa tarefa. Mamãe não queria receber, era uma forma de retribuir pelos churrascos e mimos trazidos do sul do Brasil. Nos davam pães típicos da região, as chamadas cucas, queijos, salames, as próprias carnes para o churrasco e tudo o que sobrasse das cargas dos caminhões. Às vezes o cliente não queria receber as cargas por estarem próximas do prazo de validade, então o gerente da transportadora autorizava os caminhoneiros e ajudantes a dividi-las entre eles.
Era legal ouvir aquele sotaque cantado e bonito.
Era legal ver aquelas crianças e pessoas de pele tão clarinha que pareciam vindas de outro país.
Era legal ver a forma como assavam a carne, bem diferente de nós.
Estranhávamos o sabor do chimarrão e dizíamos que tinha gosto de café forte sem açúcar.
Achávamos engraçado aquelas calças largas que alguns deles usavam e ríamos do jeito que eles usavam o cobertor: faziam um buraco no meio que desse para passar a cabeça e o usavam como um xale. Mamãe dizia que estragavam o cobertor.
Uma bela tarde de sol volto da escola onde fora fazer minha matrícula para o segundo grau (Ensino Médio) e vejo uma carreta gigante estacionada em frente de nossa casa. Apresso os passos para chegar logo, achando que deve ser algum caminhoneiro que fora buscar as roupas limpas para poder seguir viagem. Eu tinha lavado as roupas e as deixado no varal para secar e iria passá-las quando voltasse da escola.
Entro em casa e começo a tirar as roupas do varal e paro para olhar a carreta. Sabe quando tem-se a sensação de que alguém nos está observando?
Olho para a cabine e vejo um homem moreno e bonitão secando os cabelos molhados de quem tinha acabado de sair do banho. Ele para e olha para mim e eu devolvo o olhar. Eu pensei que ele iria perguntar alguma coisa a respeito de roupas lavadas e passadas. Mas não. Não houve palavras, apenas olhares.
Demorei o triplo do tempo para tirar as roupas do varal. Eu olhava para aquele homem bonito dentro daquela cabine de caminhão. Ele olhava para mim.
Me perguntava: "Será que viaja sozinho? Será que tem esposa e filhos? Deve ter; bonitão assim".
Aqueles momentos de troca de olhares foram como uma eternidade, uma paz. Alguém olhava para mim e olhava com certo interesse. Interesse romântico e não interesses vulgares como a maioria nos dias de hoje. 
Senti-me importante, apreciada, querida. 
Se ele olha para mim é porque gostou e se gostou é porque não me achou feia. Foi isso que me deixou feliz por alguns momentos.
Mas dali a pouco mamãe volta do trabalho e pergunta se as roupas dos moços caminhoneiros estão prontas, se os irmãos menores já tomaram banho, se o feijão já está no fogo, se isso se aquilo.
Entro em casa e me entrego às infindáveis tarefas. Anoitece. Tomamos banho, jantamos, assistimos a novela e vamos para a cama. Exatamente nessa ordem, de acordo com os ditames de papai. Amanhã tudo de novo. 
Me levanto bem cedo na esperança de ver a carreta gigante estacionada na frente de casa. Mas não estava mais; havia outra no lugar.
E todas as tardes eu esperava ansiosamente pela carreta do moreno bonitão. Esperava trocar mais olhares e sorrisos tímidos.
Mas nunca mais vi a carreta. Nunca mais vi o moreno bonito.
A transportadora mudou-se para outro endereço e meses depois nós também nos mudamos de casa.
E à vezes a imagem do caminhoneiro bonito vem à minha cabeça e viajo nas doces e curtas memórias de um belo fim de tarde. Um belo fim de tarde sob belos olhares de um belo caminhoneiro.


                                              



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