sábado, 28 de julho de 2012

Sem lenço nem documento, Cálice, Na linha do horizonte

                                               


Chegamos a São Paulo e ficamos pouco mais de um mês na casa do nosso tio Manoel Gomes, irmão de mamãe.
O tio morava no Jardim Popular ou Vila Ré, dizia que os dois bairros eram próximos e a correspondência chegava do mesmo jeito. São bairros da minha querida ZL (zona leste) e próximos ao meu querido bairro da Penha.
Mamãe ficava em casa ajudando a esposa do tio e Mãevelha cuidava de nós, que na época éramos apenas três: eu, Naldão e Rogério. Papai trabalhava e só voltava à noite.
A casa do tio Manoel Gomes era ampla, bonita, azul, com muros baixos, jardim florido e um piso de caquinhos cor de telha. Não sei o nome desse piso, mas era muito usado antigamente e lembrava um mosaico. No quintal dos fundos tinha uma faixa de terra com algumas bananeiras, muito legal.
Havia chovido e  logo em seguida abrira um sol quente e bonito. Acho lindo quando chove e depois vem o sol seguido por arco-iris. A luminosidade, o cheiro de terra molhada...
As minhas primas sempre ligavam o rádio enquanto ajudavam a mãe com os afazeres domésticos. E no rádio tocava: "Caminhando contra o vento, sem lenço nem documento..."
Eu ouvia, analisava e tentava entender aquela canção. Quem cantava? Como alguém pode sair sem documento? E se a polícia parar a pessoa? Ela pensa em casamento e ele toma uma Coca Cola! E eu seguia elucubrando...
Dali a pouco a música termina e inicia outra com uma voz grave e monótona que canta: "Pai, afasta de mim esse cálice... De vinho tinto de sangue". Era Chico Buarque. Eu gosto mais do Chico como compositor a cantor.
"O que é cálice? É o mesmo cálice sagrado que o padre fala nas missas? Mais elucubrações.
Anos depois vim entender que o "cálice" da música era na verdade um "cale-se"; vivíamos em plena ditadura militar e muitos artistas tiveram que deixar o Brasil: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque de Hollanda e outros.
Tempos de música boa.
Hoje, até os comerciais foram contaminados com esse lixo atual a que chamam de música!
Bom...
O volume do rádio é abaixado e escuto a voz de uma de minhas primas: "Manhê, o moleque da Marlene fez xixi no quintal!".
Correm a mãe as meninas com balde cheio de água com sabão e água sanitária; esfregam o chão e depois passam um pano com o desinfetante Pinho Sol.
Mamãe não gostou de ter o filho chamado de "moleque" e achou um exagero toda aquela limpeza neurótica; para ela, era apenas a urina de uma criança e ele não tinha nenhuma doença contagiosa.
Aos poucos mamãe e nós fomos nos habituando aos choques culturais e aprendendo hábitos e comportamentos novos para nós. Fomos nos civilizando gradativamente.
Quintal limpo, bronca dada, conselhos também: "Se quiser fazer xixi é só falar que a gente te leva ao banheiro. Lavar as mãos sempre que usar o banheiro. Não fazer xixi em qualquer lugar, só no banheiro..."
Rádio ligado e tocando a boa e velha MPB e agora tocava uma música que eu achava linda, melódica e melancólica: "Eu vou pro ar, no azul mais lindo eu vou morar..." de uma banda chamada Azymuth (nós dizíamos "Azambuja").
Nos mudamos depois para nossa primeira casa, um barraquinho simples de madeira, e o rádio sempre junto.
O rádio e a música fazem parte da nossa História.
É isso.
                
                                              
                                             


                                               







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