domingo, 14 de outubro de 2012

Franja, livros, televisão colorida, gelatina azul...

                                  

Morávamos em uma casa que ficava em um terreno grande e tinha mais três casas. Havia um pequeno jardim com a majestosa mangueira e algumas plantas de Mãevelha. Suas caqueiras (vasos) com as cravinas ficavam espalhadas pelo muro e sobre o relógio d'água. Um muro baixo separava as duas casas da frente, a nossa e da vizinha, esposa do caminhoneiro que vivia viajando.
Na parte de trás do terreno ficavam as casas da família de judeus e a do casal  que aguardava a chegada do primeiro filho. No quintal dos fundos ficavam os tanques de lavar roupas e os inúmeros varais.
A vizinha esposa do caminhoneiro tinha uma casal de filhos, Kátia e Alexsandro e mamãe e Mãevelha não conseguiam pronunciar o nome da menina e a chamavam de "Káita".
O casal de judeus tinha cinco filhos, todos clarinhos, sardentos e com cabelos lisinhos, assim com a menina Kátia.
O senhora judia nos ajudou muito e nos dava as roupas que não serviam mais em seus filhos; ela também fazia bolos deliciosos e era uma confeiteira de mão cheia. Lembro de um bolo confeitado que ela fizera, era verde com um sapinho em frente a um lago azul de gelatina e uma casinha de chocolate. Fiquei encantada. Existia gelatina azul! Nossa!
O esposo da senhora judia era de pouquíssima conversa, saía todas as manhãs para o trabalho e voltava ao fim do dia. Ele parecia o Delfim Neto, gorducho, óculos enormes escondendo pequenos olhos míopes e o "carão" largo, como dizia mamãe. Ele dizia apenas: "Bom dia e boa tarde", já a sua esposa tagarelava com mamãe e Mãevelha.
A família judia era composta, além dos pais, claro, de dois meninos e três meninas e Raquel era a mais bonita, educada e simpática de todos. Raquel reunia as crianças menores e lia livros de sua biblioteca; gostei de Aristogatas.
Um dia a acompanhei até sua casa para pegar mais livros na biblioteca e fiquei encantada com as prateleiras que iam do chão ao teto cheias de livros. Raquel nos dizia para termos cuidado com os livros.
A menina Kátia tinha uma tia que sempre lhe cortava as pontas dos cabelos e a franja. Eu tinha meus cabelos cacheados e rebeldes e franja não combina com cachos. De jeito nenhum! Fica parecendo um poodle!
Eu pedi para a tia de Kátia cortar meu cabelo igualzinho ao da menina, com franja pretinha e lisinha, mas não deu. 
A tia de Kátia disse que não dava porque meu cabelo não era liso. Fiquei triste. Raquel e sua irmã Esther tinham cabelos escuros e bem lisos, assim como Kátia, mas Sarah, a irmã judia mais velha, tinha cabelos claros e cacheados iguais aos meus. Mãevelha e mamãe diziam que Sarah tinha "cabelo de fogo, cabelo sarará, cabelo ruim" e outras "inguinóranças".
Sarah era inteligente, rebelde, bocuda e de gênio forte, bem oposto ao que era esperado das meninas de então. Esther era molecona e brincalhona.
Os meninos judeus eram o Moisés e Samuel.
Moisés tinha a mesma idade dos meus irmãos menores e Samuel era rapazote. 
Samuel adora pentelhar meus irmãos e eu adorava encará-lo do alto dos meus sete, oito anos. Eu dizia para Mãevelha e  mamãe falarem com a mãe de Samuel, mas elas diziam que era implicância minha, pois o rapazote era muito educado com elas. Com elas sim, mas com meus irmãos não!
Uma vez peguei a vassoura e chamei Samuel para briga e disse-lhe que se atormentasse meus irmãos pequenos e bundões mais uma vez, iria meter-lhe o cabo da vassoura nos cornos!
Uma tarde fui com mamãe à casa dos judeus e a senhora judia preparava bolos e nos ofereceu um pedaço. Estava delicioso. Raquel me chamou para assistir TV e dizia que sua televisão era colorida, uma raridade naqueles tempos.
Observei que colado na tela da televisão havia uma espécie de plástico com listras coloridas e deixava a imagem com nuances que lembravam as cores do arco iris. "Oxe, e isso é televisão colorida?", pensei comigo.
Achei muito estranho aquilo e pegava as embalagens plásticas do arroz, por exemplo, e colocava em frente à nossa velha televisão preto e branco achando que mudaria alguma coisa, mas o que conseguia era broncas de mamãe de chineladas de Mãevelha.
Anos depois os donos das casas nos comunicaram que deveríamos sair dos imóveis, pois eles os haviam vendido e se transformariam em transportadoras, óbvio.
Nos mudamos para a pequena casa de quintal grande na mesma rua e nunca mais soubemos das famílias que eram nossos vizinhos no mesmo grande quintal.
É isso.


                                  
                             

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