sábado, 24 de dezembro de 2011

Vergonha, Medo, Castração, Palavras

                                          


Já falei aqui que as palavras têm um poder absurdo. Podemos ferir alguém ou elevá-lo ao deleite. 
Outra coisa que não sei se já disse aqui, mas tomemos cuidado com o que dizemos para uma criança. Ouvi muita gente dizer: "Ela é só uma criança, quando crescer não vai lembrar de nada. Basta ela ir brincar e vai esquecer de tudo".
Não é bem assim. Criança lembra sim, criança fica magoada sim, criança tem sentimento sim!
Muitas palavras duras, cruéis e críticas me foram ditas quando eu era criança e até hoje me machucam. Procuro ser uma pessoa normal, cumprir com minhas obrigações, respeitar os outros, mas há momentos que "o bicho pega". Fica difícil, quase insustentável.
Mas eu sou mais forte, procuro mandar esses pensamentos, lembranças e memórias desagradáveis para o lugar de onde vieram. Procuro fazer outras coisas, pensar em outras coisas.
Sei que todo mundo teve uma infância e/ou história difícil e não quero bancar a vítima, mas sou humana, demasiado humana.
As palavras cruéis marcaram minha curta infância; fui criticada por não ser uma menina bonita e por não ter os cabelos lisos. Como se eu tivesse algum poder sobre isso.
As comparações eram terríveis; "porque a filha de fulana é assim, faz isso ou aquilo e essa menina feia só sabe ser feia".
Já falei sobre isso aqui, mas...quais são as palavras que nunca são ditas?
Nasci marcada e armada para a defesa. 
Nasci menina quando eu "deveria" ter nascido menino.
Os cabelos cacheados "deveriam" ser lisos.
"Deveria" ter sido bonita.
"Deveria" ser perfeita.
Nasci no sertão seco, mudo-me para São Paulo aos seis anos e o que mais ouço é: "O baianinha feia". Para começar, sou pernambucana, seus f.d.p!
Vou à casa da vizinha pedir Bombril (esponja de aço) e o marido dela me diz: "Pra quê você quer Bombril? Pega do teu cabelo aí". 
Filho duma égua manca!
Cresço e chegam mais irmãos e irmãs. Todos bonitos, menos eu.
Muitas vezes pensava comigo mesma: "Se eu sou a cara de meus irmãos e eles são a minha cara e se eles são bonitos, então eu também posso ser bonita. Não sou tão feia assim".
Mas a voz do povo é a voz de Deus. Pois é.
Mudo de escola e vou cursar o segundo grau (Ensino Médio) em outra e vou cheia de esperanças porque não sou conhecida nessa nova escola e talvez eu seja mais aceita e menos criticada. Ledo engano.
Via minhas colegas com seus belos cabelos longos, soltos, ao vento. Seus belos corpos formados, seus belos rostos. E eu era um "pau de virar tripa", só tinha tamanho. E lá vinham as malditas comparações: "Porque a filha de fulano é mais nova que essa menina e já tem corpo feito; essa daí é uma maria moleque mesmo".
Posso contar nos dedos os números de vezes que alguém disse que eu era bonita. E me faltariam dedos para contar o número de vezes que alguém me disse exatamente o contrário. 
À medida que fui crescendo fui me dedicando mais e mais à leitura e aos estudos. O conhecimento é a única coisa que não pode ser tirado da gente.
Era a CDF da escola, a mais estudiosa e isso mesmo tendo que cuidar da casa, dos irmãos menores e ainda ter que lavar e passar roupa para fora (no bom sentido).
Trabalhei que nem uma "cavala", como diz minha sobrinha Beatriz, cuidei de tudo e de todos e me abandonei. Pra quê me cuidar? Quem é que vai olhar pra mim? Melhor estudar bastante. Minhas irmãs, minhas primas e minhas colegas de escola, essas sim, podem se cuidar. São bonitas.
Outro inferno, com o perdão da palavra, eram as piadinhas, as gozações, humilhações e toda sorte de comentário negativo proferidos por papai, meus irmãos e alguns familiares quando vestíamos - eu e minha irmã Rosi - alguma roupa nova ou tentávamos nos arrumar. Rosi sempre foi bonita mas foi tão vítima quanto eu das duras palavras de pessoas insensíveis, mesquinhas e de pensamento tacanho.
Tínhamos vergonha de vestir uma roupa nova, pois sabíamos que ouviríamos piadinhas: "Que roupa feia é essa? Que roupa ridícula.Você vai sair assim?"
E Rosi e eu sempre fomos mais conservadoras e procurávamos vestir roupas simples e discretas; nada chamativas. Não queríamos chamar a atenção, tínhamos vergonha do que as pessoas falariam, pensariam. Procurávamos ser "invisíveis", passar desapercebidas. 
Isso foi tão marcante que até hoje não conseguimos e não sabemos nos maquiar. Passar um simples batom nos "beiços" é uma missão impossível. Usar óculos de sol também. 
Fui ao oftalmologista e ele me recomendou usar óculos de sol para proteger a retina. Tenho um tumor no cérebro e ele é controlado com remédios, cirurgias e radiação para não crescer mais e não ameaçar o nervo óptico. Os óculos de sol entrariam no kit proteção, mas cadê que eu uso? Acho que se eu usar maquiagem ou passar um simples batom nos lábios e usar óculos escuros, as pessoas irão olhar para mim, para mim, e irão rir e fazer piadas.
Absurdo, mas é assim que fui condicionada a acreditar, a me comportar. Por que raios as pessoas olhariam para mim? Milhões e milhões de pessoas pelo mundo usam maquiagem e óculos de sol.
As palavras têm um poder destruidor. Absurdamente destruidor.
Hoje vejo meninas pequenas já danadinhas de vaidosas. Minhas sobrinhas adoram um batom das princesas, usam óculos de sol, arrumam os cabelos, querem roupas novas e "combinantes". 
Eu já comprei alguns batons lindos da Avon e da Natura e me perguntem se já usei. 
Essas duas marcas têm excelentes produtos mas me atenho apenas aos shampoos, desodorantes, sabonetes e hidratantes. Maquiagem? Não, obrigada. Não uso. Por quê? Não sei.  Não sei porque. 
Aí vem alguém me dizer que eu deixei com que fizessem isso comigo. Deixei?! Que voz pode ter uma criança de seis anos de idade que é considerada grande e capaz de cuidar de irmãos menores? Que voz tem uma criança de seis anos que não pode brincar porque "você já é grande e tem que cuidar de seus irmãos. A neta da dona fulana tem a sua idade e já cuida da casa e ajuda a avó". 
Sempre as malditas comparações, as malditas cobranças.
Casa, escola, irmãos, responsabilidades, cobranças, críticas, culpa. Necessariamente nessa ordem.
Lembro de uma professora da 4ª série ao dizer que nordestinos têm muitos filhos porque vêem neles uma fonte de renda quando crescerem. Querem muitos filhos para quando estiverem grandes, trabalharem e darem dinheiro em casa. Fiquei chateada quando ouvi isso. Não poderia ser verdade. Era verdade. 
Posso dizer isso de cátedra e sem preconceito. Vejo pessoas próximas tendo a mesma atitude em relação aos filhos que meus pais nordestinos tiveram. Posso falar que não é preconceito porque sou nordestina e todo santo dia sofro preconceito das pessoas que me julgam por minha aparência acromegálica. 
E a Acromegalia veio para piorar o que já era ruim. 
Não bastassem todo o sofrimento e agonia; toda a fome, seca e miséria; toda cobrança, crítica e culpa; lá vem a Acromegalia para atrapalhar mais ainda.
Mas a Acromegalia trouxe coisas boas: a capacidade de me expressar através da palavra escrita; a vontade de educar as pessoas e fazer com que procurem conhecer antes de julgar. Ser educada para com pessoas que me olham intensamente e algumas tecem comentários cruéis. Aparentar normalidade, tranquilidade. Tudo bem.
Tudo bem o cacete! 
Sabe o que é doer? 
Mas como ninguém tem culpa por meus problemas, eu que saiba lidar com eles. 
Lido de forma respeitosa, procuro não ofender ou magoar ninguém. Mas nem todo mundo pensa ou age assim.
Fazer o quê? 
Seguir em frente. 
"Levo esse sorriso porque já chorei demais".

                                              



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