quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Bala de Mel

                                              


Estávamos a pouco tempo em São Paulo e tínhamos nos mudado para o bairro onde moramos até hoje. Quando aqui chegamos, moramos por um mês num bairro da Penha, na casa do tio Manoel Gomes e nosso primo Pedro "Sabe como é o negócio" conseguira alugar um pequeno barraquinho próximo à sua casa.
O primo sempre falava a frase "Sabe como é o negócio" e a usava para tudo o que fosse assunto. Ele não é muito normal, é meio fraco das ideias.
Uma prima nossa, a Ivete, que ri de tudo e por tudo, já morava no bairro há algum tempo e pede ao seu marido, o finado Antonio Roque, para nos mostrar os arredores.
Mamãe e Mãevelha cuidam da limpeza do pequeno barraco enquanto papai, o tio Manoel Soares e o primo Pedro cuidam da mudança. Não tinha muito o que trazer; basicamente sacolas e malas com roupas e alguns pertences. A esposa do tio Manoel Gomes nos deu um sofá cama grandão e pesadão de plástico vermelho com minúsculas bolinhas coloridas. Aquilo me lembrava o Universo, as estrelas e as constelações. É, eu sei, eu tinha apenas seis anos, mas também sempre fui meio fraca das ideias. Mal de família.
É que tínhamos outro primo maluquetes mas de inteligência absurda e ele gostava de ir à casa de Paipreto e Mãevelha para estudar e ler seus muitos e adorados livros. Ele gostava da ampla mesa da casa de meus avós e dizia que estudava melhor naquela mesa grande e limpa. Eu também sou assim, nunca consegui estudar e/ou fazer minhas lições de casa se a mesa não estivesse limpa e arrumada. Mania de gente maluquetes.
O primo intelectual, João Cândido, nunca se casou, não teve filhos e preferia a companhia de seus preciosos livros à companhia de pessoas; de certas pessoas, talvez.
Estou achando que isso é mal de família mesmo. Ai Jesus!
João Cândido respondia às perguntas de Paipreto e falava sobre tudo: geografia, História, línguas, astronomia e para toda pergunta o primo tinha uma responda inteligente na ponta da língua.
Eu ouvia as conversas do primo João Cândido com Paipreto e acredito que foi dai também que surgiu meu interesse pelos livros e pelo conhecimento.
Aliás, meu Paipreto sempre dizia: "Minha filha, não tem riqueza maior no mundo do que o conhecimento".
Meu Paipreto.
Bom...
Durante a limpeza do barraco e a mudança dos nossos cacarecos, papai pede a Antonio Roque para ir comprar café e cigarros; não conhecia bem a região e estava ocupado com seus afazeres.
Vou com Antonio Roque ao botequinho e caminho segurando sua mão.
Antonio Roque era negro e alto e eu achava que ele parente do meu bisavô Francisco. 
E eu tenho uma coisa com mãos; adoro pegar, segurar, beijar, buscar força e conforto nas mãos daqueles que gosto. As compridas e fortes mãos de Rafaela, as brancas, finas e delicadas mãos de Maitê, as mãos hábeis ao segurar o lápis de Beatriz, as mãos sempre magrinhas, frágeis e compridas de Maria Julia, as mãos fofinhas e gordinhas de mamãe... Mãos.
Volto para casa com Antonio Roque e ele me mostra o bairro que consiste basicamente de chácaras, ruas de terra e de barro vermelho agora alagadas pelas fortes chuvas de março. São as águas de março fechando o verão é promessa de vida em teu coração - Tom Jobim e Elis Regina. Grandes talentos de nossa música.
Observo o verde das chácaras contrastando com o céu límpido e azul, as nuvens brancas e fofas, a terra vermelha molhada e a correnteza que se formara com as fortes chuvas.
Achei lindo aquele espetáculo da Natureza; aquela profusão de cores e sentidos.
Cheiro de terra molhada, cheiro das verduras frescas e molhadas das chácaras, cheiro do café e do cigarro de papai.
Antonio Roque havia comprado também algumas balas de mel. Para nós, bala era só de revólver e a bala doce era chamada de confeito. 
Lembro-me da embalagem das balas de mel, era um papel amarelo com listras pretas imitando o corpo de uma abelha. Lembro da marca da bala: Kid´s.
A bala era dura e recheada com um líquido que deveria ser mel. Era muito claro e ralo para ser mel, mas tinha gosto de mel. Pronto.
Caminhamos de volta para casa e paro aqui e ali para apreciar as belezas e encantos da Natureza. Antonio Roque espera pacientemente e diz para irmos logo, pois vai escurecer e papai e mamãe já devem estar preocupados com a demora. Não havia iluminação na nossa casa nem na rua, só nas ruas e avenidas principais do bairro. Nosso barraco era iluminado à luz de velas, mas pouco tempo depois foram feitas melhorias no bairro e já podíamos assistir ao Jornal Nacional numa grande, velha e pesada TV dada por tio Manoel Gomes. 
Chegamos finalmente em casa e mamãe pergunta: "E por onde vocês andaram?"
Antonio Roque conta o ocorrido e mamãe diz: "Mas essa minha moleca não jeito mesmo"




                                      


                                                     





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