quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Johnny (A despedida de Mãevelha)




Johnny era um gato preto e branco que fazia parte da tríade felina companheira de Mãevelha. Havia Micchele (leia-se Miquele, por favor) e Andretti.

Minha avó passava a maior parte do tempo sentada; tinha dificuldade de locomoção.
Os gatos gostavam de ficar aos seus pés enquanto ela costurava, fazia crochê e principalmente fazia suas refeições. 
Papai não gostava de ver os gatos perto de Mãevelha e ainda mais quando ela "acidentalmente" deixava cair um pouco da comida, principalmente carne. 
Os gatos adoravam e serviam também como "gato espiatório" para levar a culpa pelo cheiro dos gases exalados por minha avó.
Mãevelha levantava uma parte do corpo, sacudia seu vestido florido - ela adorava vestidos estampados de flores miúdas - e deixava escapar os gases que estiveram presos e fermentando ali por algumas horas.
Após a liberação espontânea de gás Mãevelha voltava ao seu crochê normalmente e com a aparência mais aliviada. Mas o detalhe curioso é que não tinha nenhum gato perto dela.
Papai, sempre papai, passa perto da minha avó e diz:
"Mais que fedô do má dos cachorro é esse? Meu Padim Ciço do Juazeiro! O cabra de fez isso tá morto, só falta enterrar!".
Mãevelha concorda com papai e nos chama: "Vem cá menino,tire esses gatos daqui e bote pra fora... eles tão danados pra peidar".
Mas não tinha nenhum gato por perto!
Mudamos de casa e os gatos foram juntos, para alegria de Mãevelha.
Minha avó era diabética, teimosa, gulosa e adorava doces. Esses defeitos entre outros já vêm de fábrica. 
Mãevelha começa a ficar doentinha, não queria comer, tem febre e o seu dedinho do pé ficou escuro e necrosou. Mamãe estava em Pernambuco mas voltou ao saber da mãe adoentada.
Mamãe leva Mãevelha ao hospital e chegando lá constatou-se que a necrose já atingira a altura do joelho da minha avó e os médicos decidiram amputar a perna dela. Conversam com mamãe que autoriza o procedimento.
Mas antes o médico precisa examinar minha avó mais detalhadamente e ela só permite se mamãe estiver junto. Mãevelha era muito pudica e dizia que não ficava bem uma senhora viúva como ela ficar sozinha com um homem. Onde já se viu?
Mãevelha tinha 84 anos e era viúva a mais de 30 anos!
Mas mamãe fica com ela enquanto o médico a examina. O doutor pede para ela abrir um pouco o vestido para pode auscultar o seu coração; ela desabotoa só um botão e segura os demais com as mãos. O médico ri. Depois ele levanta o vestido dela para ver a perna necrosada; Mãevelha puxa o vestido para baixo. 
"Mas que doutô mais incherido!"
Mãevelha é levada para o quarto e aguarda a cirurgia. Mamãe volta para casa para pegar algumas coisas para levar para ela quando voltar.
Vão buscar Mãevelha no quarto para a cirurgia.
Mãevelha dorme.
Mãevelha dormiu e foi ao encontro de Paipreto.
A família é avisada e o caixão com Mãevelha é colocado na sala para o velório. Hoje as pessoas são veladas no cemitério mesmo. 
Muita gente vem ver, se despedir da minha avó, a Dona Maria que gostava de rir com os causos dos outros, que gostava dos docinhos escondidos que os netos traziam quando voltavam da escola.
Os gatos perceberam que Mãevelha tinha voltado para casa. Eles iam para o quarto dela, subiam na cama e voltavam para a sala. Fizeram esse caminho várias vezes e vendo que ela não voltaria mais a sentar naquela cama para deixar a comida cair sem querer e depois culpá-los pela emissão de gases tóxicos, decidem ficar debaixo do caixão.
Eles rodeavam o caixão e miavam, chamando por minha avó. Os gatos não entendiam porque ela estava ali e não na cama com eles a seus pés. Eles miavam como que para chamá-la de volta ou para que alguém explicasse porque ela estava ali.
Johnny, o mais apegado a ela, vai e volta ao quarto mais uma vez e querendo entender o que realmente está acontecendo, pula em cima do caixão e senta-se sobre minha avó.
Muitas pessoas de boa moral e bons costumes (Deus tá vendo) indignaram-se com a atitude dos gatos e soltaram exclamações de susto, surpresa e até de nojo.
Me arretei com aquela frescura toda e aquele falso moralismo e disse:
"Os gatos estão aqui porque sentem de verdade; eles não fingem como muita gente".
Claro que levei broncas de papai e mamãe, mas como dizia minha bisavó Maria Higinia, a mãe de Mãevelha: "Engulo um boi com as pontas e não me entalo, já um mosquito me entala".
Sou filha, neta e bisneta de mulheres fortes, bravas, corajosas.
Sou corajosa. Enfrento preconceito, ignorância e incompreensão por causa de uma doença que eu estou ainda aprendendo a entender a até a aceitar.
Bisavó Gina, Mãevelha, mamãe...eu.
Sou mameluco
Sou de Casa Forte
Sou de Pernambuco
Sou Leão do Norte.


Um comentário:

  1. Oi! Estou encantada com o seu blog, li de uma sentada. Gosto de tudo por aqui, a informação sobre algo que não conhecia, o seu humor frente a tudo, os "causos" da sua família, as lembranças tocantes... Parabéns! Por tudo o que li você é realmente muito corajosa.

    Abraço forte, de uma neta de pernambucanos para você.

    Pati :)

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